Nota Técnica n° 001/2023

Data: 29 de maio de 2023
Assunto: Compromisso Nacional Criança Alfabetizada
“A palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens.”
Freire (1987)
O Compromisso Nacional Criança Alfabetizada resgata, em conjunto com outras ações do Ministério da Educação, a possibilidade de diálogo com os diversos setores sociais sobre o dever constitucional de assegurar a educação como um direito de todos os cidadãos e isso, certamente, inclui a alfabetização. Além disso, a proposta sistematiza algumas premissas já consolidadas na história das políticas públicas nacionais, como a necessidade de situar a escola no centro de todo o processo, corresponsabilizando os diversos atores pelas aprendizagens das crianças; a articulação entre os municípios, os estados e a união em prol de um compromisso comum; a compreensão em torno do vínculo imprescindível entre gestão, formação, materiais, infraestrutura, avaliação e monitoramento; a indução de quadros locais responsáveis pelo fomento e pela gestão da formação continuada nos mais longínquos municípios brasileiros e, ainda, o resgate da discussão sobre o que significa o processo de alfabetização na Educação Infantil, situada em bases conceituais mais coerentes com o direito à infância.

A Rede Latino-americana de Alfabetização sente-se honrada com a possibilidade de diálogo e pretende contribuir com o conhecimento científico produzido por pesquisadores latino-americanos que realizam investigações psicolinguísticas e didáticas no campo da Alfabetização, a partir do marco construtivista psicogenético, desde a década de 1980. Além disso, também coloca à disposição do Ministério da Educação a articulação que fomenta entre os diversos setores sociais de toda a América Latina: universidades, redes de ensino públicas e privadas, organizações não governamentais e organizações da sociedade civil de interesse público.

A análise atenta ao que foi apresentado sobre o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada na reunião do dia 17 de maio e da primeira versão do documento encaminhada no dia seguinte, nos provoca a indicar alguns aspectos que poderiam ser aprofundados. Inicialmente, vale destacar que o documento aponta como responsabilidade do MEC a elaboração de diretrizes e parâmetros para os cinco elementos técnicos que compõem o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada: gestão, formação, materiais didáticos e pedagógicos, infraestrutura e avaliação. Desta forma, há uma indicação explícita de que o MEC assumirá a tarefa de definir os critérios para credenciamento de programas de formação e elaboração de materiais de apoio, além de parâmetros e métricas de avaliação e acompanhamento. Isso implica assumir uma concepção de alfabetização na qual se possa ancorar os aspectos pedagógicos do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.

Ainda que o documento não explicite o marco epistêmico no qual se apoia para a definição de diretrizes e parâmetros, a concepção de alfabetização assumida pelo MEC está indicada quando o documento se compromete a executar o SAEB, a oferecer solução de avaliação da fluência leitora, a realizar cantinhos de leitura e, principalmente, quando propõe uma abordagem de alfabetização para a Educação Infantil e outra para o Ensino Fundamental. A matriz de avaliação do SAEB, por exemplo, define como habilidade esperada para o 2o ano a relação entre elementos sonoros das palavras com sua representação escrita, a leitura e escrita de palavras e frases. Tais habilidades estão ancoradas em uma concepção de alfabetização que desvincula a apropriação do sistema de escrita alfabética das práticas sociais reais de leitura e escrita. Ainda que a matriz de avaliação do SAEB indique a necessidade de os alunos escreverem textos, a presença de tais habilidades orienta as práticas pedagógicas e a escrita deixa de ser considerada um objeto cultural, que permite uma participação efetiva nas diversas práticas sociais em que se faz presente, para se transformar em um instrumento de codificação rudimentar. Em Pedagogia do Oprimido, Freire (1987, p.13) já nos ensinava que para “poder re-existenciar criticamente as palavras de seu mundo, para na oportunidade devida, saber e poder dizer a sua palavra” é preciso ir além de ensinar a repetir palavras ou desenvolver habilidades que se relacionem a uma escrita abstrata.

Ainda mais grave é a proposta de avaliação da fluência leitora, difundida amplamente pelo país como política de monitoramento das aprendizagens e que está baseada apenas no percentual de palavras reais e inventadas oralizadas por minuto, sem que isso represente necessariamente a compreensão do que se comunica. Em síntese, o que se vislumbra a partir do que propõe o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental é uma concepção que entende que ler é apenas decifrar e que escrever consiste somente em transformar sons em letras. Por trás de uma política pública que assume uma concepção de alfabetização que banaliza e deforma a escrita, está implícito o compromisso com práticas rudimentares de escrita e leitura. Para que a alfabetização cumpra de fato o seu papel na formação de uma sociedade mais justa, é preciso garantir que crianças, jovens e adultos tenham o direito de aprender a ler e a escrever sempre a partir da participação de práticas sociais reais de leitura e escrita. Isso implica, por exemplo, ter em sala de aula mais do que cantinhos de leitura, mas uma biblioteca de classe com revistas e livros de literatura cuidadosamente selecionados e adequados à faixa etária, para que se possa aprender a participar de uma comunidade de leitores, interagindo com diversos autores e confrontando diferentes interpretações, ideias e opiniões sobre obras literárias consideradas valiosas.

O documento também não explicita de forma objetiva a parceria com as universidades, elemento central na consolidação de uma política pública de alfabetização que toma como base o conhecimento científico produzido pelos pesquisadores brasileiros no campo da alfabetização. A modelagem da colaboração e a arquitetura de gestão privilegiam a descentralização de recursos e ações, que pode ser entendida inicialmente como positiva, mas é preciso considerar o limite tênue entre descentralização e terceirização das políticas de alfabetização e de formação de professores. A política de balcão pode fomentar significativamente os sistemas de ensino e o apostilamento de conteúdo, massificando estudantes e professores. Quando se trata do avanço no campo científico é possível oferecer o retrocesso, a desinformação, como possibilidade de escolha? É democrático, digno e justo com as crianças, jovens e adultos não alfabetizados? Escolhas autônomas são democráticas quando acompanhadas da garantia de acesso ao que se tem de mais avançado na produção científica. Sim, tratando-se de alfabetização o caminho importa. É possível considerar que as contribuições científicas produzidas a partir do marco construtivista psicogenético, que revelaram como as crianças aprendem a ler e escrever, estão para a alfabetização assim como a vacina está para a saúde. Ainda que a política esteja pautada na liberdade de escolha, só se tem, de fato, autonomia quando as condições de acesso ao conhecimento produzido e acumulado estão asseguradas a todos.

As estratégias de reconhecimento previstas no documento indicam ainda a criação de prêmios e selos. No entanto, a lógica meritocrática que coloca professores, escolas e redes de ensino em concorrência, despreza alguns princípios fundantes de uma sociedade democrática como a alteridade e o compromisso com o coletivo. Ao gerar seleção e classificação, a premiação também gera exclusão e privilegia com incentivos financeiros e normativos os que menos precisam do Estado para superar os seus desafios. Em um governo comprometido com a democracia, não cabe a formulação de políticas públicas pautadas pela meritocracia, como geradora de resultados. Na educação, assim como na saúde, a lógica capitalista meritocrática que regula o mercado não se aplica, porque o que está em jogo é o atendimento ao direito constitucional de ter acesso a uma educação de qualidade e isso implica romper com uma tradição que dissemina o espírito da concorrência agressiva, na qual somente os mais aguerridos tem valor. Muito já se sabe que promover a equidade social pressupõe ajustar o desequilíbrio de oportunidades, o que implica considerar as particularidades dos diversos contextos sociais, promovendo a equiparação entre os meios de alcançar um mesmo resultado. Uma política pública no campo da alfabetização, pautada pela lógica da gratificação por aluno capaz de tirar boas notas em avaliações externas, fomenta sobremaneira a ideia de uma alfabetização baseada no treino e com isto mantém em marcha a produção da desigualdade social, no que concerne ao direito de fazer uso da escrita para exercer a plena cidadania.

Face ao exposto, a Rede Latino-Americana de Alfabetização recomenda fortemente a explicitação do sentido atribuído à palavra alfabetização. Como afirma Ferreiro (1992), há uma crescente conscientização da importância da alfabetização, “mas há também um risco de regressar à concepção de alfabetização como algo demasiado elementar, isto é, mínimos rudimentos de decodificação. (...) Há risco sério de continuar gerando desigualdades através de velhos esquemas de competitividade” (p.53). Atualmente contamos com um consistente conhecimento teórico sobre a natureza da alfabetização, resultante das contribuições de várias áreas de conhecimento. Nesta visão multidisciplinar não é possível retroceder a uma concepção simplificadora e equivocada sobre o processo de alfabetização. Se as crianças, que dependem prioritariamente da escola, não são introduzidas a linguagem escrita em toda a sua complexidade, podem até alcançar uma “alfabetização mínima, rudimentar” que lhes permitirá futuramente seguir algumas instruções escritas, para aumentar produtividade em algum trabalho precário, “contudo não teremos formado cidadãos para este presente nem para o futuro próximo” (ibid., p.54). Ferreiro ainda alerta que “há que se alfabetizar para ler o que os outros produzem ou produziram, mas também para que a capacidade de ‘dizer por escrito’ esteja mais democraticamente distribuída. Alguém que pode colocar no papel suas próprias palavras é alguém que não tem medo de falar em voz alta” (ibid., p. 54).

Se o propósito da alfabetização é garantir às crianças, jovens e adultos a plena participação social, o que pressupõe a formação de cidadãos capazes de se comunicarem por escrito com diferentes propósitos, não é coerente oferecer um processo de aprendizagem que conceba a leitura como oralização e a escrita como transcrição da fala. Uma política de alfabetização que se compromete com a ampla participação de crianças, jovens e adultos nas práticas sociais reais de leitura e de escrita, ancora sua proposta naquilo que o conhecimento científico produzido no campo da alfabetização aponta: é imperante que a reflexão que fazem sobre o sistema de escrita (quantas e quais letras e em qual ordem) esteja inserida em contextos de aprendizagem em que se leia e se escreva com sentido, em situações didáticas pautadas nas práticas sociais reais.

Nesta perspectiva, alfabetizar-se pressupõe fazer uso de diferentes práticas sociais de leitura e escrita, estabelecendo interações significativas com a cultura e, ao mesmo tempo, compreendendo o funcionamento do sistema de escrita em situações comunicativas que tenham sentido. É refletindo sobre a língua escrita em sua diversidade textual, conforme se apresenta nas situações reais de uso social, e não fora delas, que o sujeito pensa sobre o que a escrita representa e como se organiza. O ingresso nas culturas do escrito inclui o ingresso na escrita e, por este motivo, não cabem fragmentações quando se concebe a alfabetização. Para o sujeito que aprende precisa ser um único processo, garantindo que a reflexão sobre a escrita esteja situada em uma função comunicativa que faça sentido para ele.

Neste sentido, é preciso assegurar que crianças, jovens e adultos tenham a liberdade de refletir sobre a escrita e que seus pensamentos sejam levados em conta para que possam avançar em suas conceitualizações. Para tanto, é fundamental propor políticas públicas de alfabetização que apoiem os professores no planejamento e na realização de situações didáticas nas quais o sujeito possa colocar em jogo tudo o que pensa e sabe, que tenha problemas a resolver e decisões a tomar, que possibilite a máxima circulação de informações e que o conteúdo trabalhado mantenha as suas características de objeto sociocultural real, sem ser transformado em objeto escolar vazio de significado social, que fragmenta a língua escrita em sons, sílabas ou palavras descontextualizadas e desprovida de sentido (Weisz, 1999).

Por esta razão, nossas proposições neste quesito são:
  1. que a política de alfabetização do atual governo ofereça a definição de qual alfabetização se almeja para a população, assim como indique qual o processo de aprendizagem é coerente com a concepção adotada;
  2. que seja definida uma concepção de alfabetização que reconheça as crianças como membros ativos de uma sociedade, rechaçando práticas pedagógicas rudimentares de leitura e escrita em qualquer segmento de ensino;
  3. que o MEC assuma o compromisso de garantir que a escola ofereça oportunidades e condições para que os estudantes exerçam e se apropriem das mais diversas práticas sociais de leitura e escrita, de modo que elas não continuem exclusivas daqueles que tiveram o privilégio de nascer em contextos sociais mais favorecidos;
  4. que seja amplamente disponibilizado aos professores as contribuições das pesquisas psicolinguísticas e didáticas, pautadas em referenciais científicos que consideram o que as crianças pensam;
  5. que se construa um alinhamento entre a concepção de alfabetização e os indicadores previstos nas matrizes de referência das avaliações nacionais, aspecto imprescindível para induzir a necessária transformação das práticas pedagógicas em prol da plena participação nas práticas sociais de leitura e escrita;
  6. que sejam respeitados os diferentes tempos de aprender e que a definição de uma idade certa não impeça as crianças de refletirem sobre a escrita e nem seja geradora de fracasso escolar;
  7. que seja implementado o acompanhamento do processo de alfabetização nas diferentes regiões do país, através de pesquisas científicas desenvolvidas por pesquisadores de universidades públicas brasileiras e por pesquisadores de reconhecido conhecimento na área de outros países da América Latina;
  8. que a modelagem da colaboração e a arquitetura de gestão da política de alfabetização do atual governo refute qualquer estratégia meritocrática e potencialize o trabalho colaborativo entre os professores e gestores, constituindo, por exemplo, núcleos regionais que se configurem como espaços de apoio às redes municipais;
  9. que as universidades, especialmente públicas, sejam reconhecidas como instituições propositivas em relação aos problemas enfrentados na Educação Básica e que sejam convocadas a participar do diálogo em busca de alternativas possíveis para o campo das políticas públicas de alfabetização;
  10. que sejam integradas e articuladas diferentes políticas do MEC para construção, em conjunto com a UNDIME e CONSED, de um programa nacional que ofereça as condições necessárias às secretarias de educação para que possam avançar na construção de políticas públicas municipais de formação de professores, com apoio técnico, material e financeiro.
A história da alfabetização no Brasil, marcada por constantes mudanças de concepções e abordagens, torna sensível o posicionamento do atual governo neste momento. Paradoxalmente, está posta a impossibilidade de um projeto que não tome como ponto de partida determinados pressupostos sobre o que é estar alfabetizado, sobre como se aprende e sobre o próprio objeto de conhecimento, no caso, a língua escrita. Neste sentido, reiteramos o posicionamento da Rede latino-americana de Alfabetização em colocar à disposição do Ministério da Educação o conhecimento científico produzido por diversos pesquisadores latino-americanos que, a partir do marco epistêmico construtivista psicogenético, vêm há anos implicados com uma formação que tem como peça fundante a ação inteligente de crianças, jovens e adultos em seu processo de apropriação das culturas do escrito.

Referências
  • FERREIRO, Emilia. Com todas as letras. Trad. Maria Zilda da Cunha Lopes. São Paulo: Cortez Editora, 1992.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1987.
  • WEISZ, Telma. O Diálogo entre o Ensino e a Aprendizagem. São Paulo: Ed. Ática, 1999.
Diretoria Geral
  • PRESIDENTA - Giovana Zen
  • VICE-PRESIDENTA - Maria da Conceição de Carvalho Rosa (Nalu)
  • SECRETÁRIA - Marta Durante
  • VICE-SECRETÁRIA - Giulianny Russo
  • TESOUREIRA - Renata Frauendorf
  • VICE-TESOUREIRA - Débora Rana
  • COORDENADORA NÚCLEOS REGIONAIS - Rosaura Soligo
  • VICE-COORDENADORA NÚCLEOS REGIONAIS - Elisabete Monteiro
Diretoria da Rede Latino-americana de Alfabetização
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